Tiago Donassolo
tiagobellei@hotmail.com
Acadêmico de Filosofia
Universidade Federal da Fronteira Sul
Resumo: O presente artigo faz uma
exposição das ideias centrais da obra “O livre-arbítrio” de Santo Agostinho. Os
temas abordados são especificamente a questão da Criação e a existência do mal,
bem como da faculdade do livre-arbítrio concedido por Deus ao homem, mercê do
qual ele teria a capacidade de escolha entre o bem e o mal. Tais conceitos são
contrapostos ao pensamento calvinista, extraído exclusivamente da obra “As
Institutas” de João Calvino. O objetivo de tal intento é, não outro, senão o de
demonstrar que há uma possibilidade de identificação do pensamento agostiniano
com os ideais calvinistas, como também do pensamento protestante em geral.
Palavras Chave: Livre-arbítrio. Criação. Bem e Mal. Agostinho. Calvino.
Introdução
Agostinho escreve O
livre-arbítrio a fim de refutar o pensamento dos maniqueus, seita da qual
fez parte durante algum tempo antes de se converter ao cristianismo. Os
maniqueus apregoavam a existência de duas forças distintas e opostas no
universo, o Bem e o Mal. A referida obra foi concluída por volta do ano
395 da era cristã, quando Agostinho já havia sido ordenado Bispo de Hipona.
Autor de inúmeras outras
obras, sempre voltadas às doutrinas da religião cristã e a correta compreensão
das Escrituras Sagradas, Agostinho demonstra um pensamento conciso e
argumentativo, muito próximo do método filosófico grego.
O problema central da
obra aqui analisada são principalmente os temas da liberdade humana e da origem
do mal. O que será comparado ao pensamento de Calvino, em uma tentativa de
demonstrar a relação entre as interpretações destes autores, com respeito a
alguns pontos da fé cristã, entre eles o livre-arbítrio.
João Calvino, juntamente
com Martinho Lutero, é um dos pais do movimento protestante. A sua doutrina
mais conhecida é a da predestinação divina, por meio da qual Deus escolhe uns
para alcançarem o bem – ou, salvação - e relega outros ao seu estado de morte
espiritual. Com efeito, muitas vezes são feitas interpretações erradas acerca
dessa doutrina, o que, embora não seja seu objetivo primeiro, este artigo
tentará desmistificar.
Como base do pensamento
calvinista, serão usados os dois primeiros volumes, de um total de quatro, da
obra “As Institutas”, que esboça os princípios básicos pelos quais é regida a
doutrina calvinista, e pelos quais também é fortemente influenciado o
pensamento protestante.
Dessa forma, visa-se
demonstrar, com base nas pesquisas bibliográficas realizadas, que a doutrina
calvinista está fortemente embasada nos conceitos de Agostinho, inclusive no
que diz respeito ao livre-arbítrio.
O pensamento agostiniano na obra
“O Livre-Arbítrio”
A Origem de tudo e a existência do Mal
Tomando como base o
primeiro tema, ou problema, levantado por Agostinho em sua obra, pode-se ter
ideia da profundidade da análise das implicações das conclusões agostinianas. O
problema referido consiste em responder se o mal é ou não uma criatura divina.
A um olhar superficial, o
problema não traz grande complexidade; afinal, considerando-se Agostinho um
cristão autêntico, não é de se admirar que nele também esteja a firme convicção
de que em Deus resida todo o bem, e que nenhum mal pode ser encontrado Nele.
Portanto, parece-lhe lógico afirmar que Deus não é o autor do mal, contudo, a
sinceridade do autor não deixa passar o fato de que o mal está presente. Como,
pois, poderia existir o mal se Deus, único criador de tudo o que existe, não o
teria criado?
Eis, então, o grande
desafio do Bispo de Hipona, responder como o mal pode existir não sendo criado
por Deus e, visto que o mal aparentemente se opõe ao bem, como resguardar Deus
e seus atributos de onipotência e de causa primeira de todas as coisas, sem
decair para uma concepção dualista, a qual o teólogo pretendia refutar?
A solução proposta por
Agostinho é simples, e nem por isso menos genial. Consiste em qualificar o mal
não como um ser objetivo, mas uma ausência de ser, um não-ser. Dito de
outra forma, para Agostinho o Mal, do ponto de vista metafísico-ontológico,
simplesmente não existe, sendo tão somente uma privação do Bem. Já do ponto de
vista moral, o mal nada mais é do que a rendição do homem as paixões, e ceder a
elas, em última instância, não é nada além de uma ausência de virtudes.
O Livre-arbitrio: causador do mal,
contudo, um bem.
Surge então a questão
central na obra de Agostinho: o livre-arbítrio. Para o autor, este é o
responsável pelo pecado. O argumento se sustenta na excelência da faculdade da
razão, exclusiva do homem, que nos eleva à condição de seres superiores dentre
os demais seres vivos. É justamente esta faculdade que nos permite subjugar os
desejos inferiores, o que por sua vez eleva a razão à uma posição de senhorio
no homem.
Não existindo nada maior
ou mais excelente que a razão humana, exceto Deus, apenas Ele poderia
subjugá-la em favorecimento das paixões, o que é evidentemente impensável,
visto ser Deus absolutamente justo e bom. Daí segue-se que, sendo a razão
superior a paixão, é somente pela deliberação cúmplice da razão que o homem
pode entregar-se às paixões. E este ceder voluntário nada mais é do que o
exercício do livre-arbítrio. Logo, o livre-arbítrio pode vir a ser a causa do
pecado.
Isso leva Agostinho a
questionar se, visto ser o livre-arbítrio o causador do pecado, não seria ele
um mal. O que imediatamente é refutado recorrendo-se a argumentação de que a
vontade livre é concedida por Deus e, portanto, só pode ser um bem, já que,
para o autor, Deus não pode ser autor de mal algum. Ressalta-se ainda que a
liberdade da vontade é dada por Deus com o fim único de que o homem se sirva
dela para agir com retidão. Por isso, é com justiça que aquele que não usa dela
para este fim seja castigado. O que já basta para se compreender em que sentido
o livre-arbítrio é o causador do mal.
A vontade é o único meio necessário
para se alcançar vida feliz
Dado o objetivo deste
artigo, é necessário também abordar outro tema levantado por Agostinho, que
consiste na faculdade da boa vontade adquirida através da própria vontade.
Para Agostinho (2008,
p.56), boa vontade é aquela pela qual desejamos viver com retidão e
honestidade, para atingirmos a verdadeira sabedoria. Para o autor, esta boa
vontade é o bem mais precioso que o homem pode possuir, e para alcançá-lo a
única exigência é a vontade do próprio homem. Por sua vez, o possuir a boa
vontade implica no exercício de quatro virtudes, a saber: a prudência, que é a
ciência das coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas; a
força, pela qual pode-se suportar a perda de todas as coisas; a temperança, que
refreia os desejos e, finalmente, a justiça, que consiste em dar a cada um o
que é seu.
Ou seja, conclui-se que
querer ser honesto e reto depende exclusivamente da vontade do homem. Daí
segue-se que é com justiça que aqueles que não desejam a boa vontade sofram a
infelicidade, pois a única exigência para a felicidade é a boa vontade, que
depende unicamente do querer humano. Nisto também reside o motivo pelo qual nem
todos chegam à felicidade, embora todos a desejem. Pois a vida feliz, que para
Agostinho é a finalidade da existência do homem, só pode ser alcançada por
intermédio da boa vontade e, ainda que todos desejem a felicidade, nem todos
fazem uso da vontade para desejar a boa vontade.
Por fim, Agostinho (2008,
p.60) afirma que é somente pela vontade que chegamos a gozar de uma vida feliz
ou infeliz. Sem dúvida, é seguro concluir que, para o autor, a vontade é a
única responsável pela fortuna ou desventura do homem. Se esta vontade é
possível para todos, por meio do próprio esforço de cada um, não fica
suficientemente claro, como se observará com maior propriedade na segunda parte
deste artigo.
Certamente, existem
muitos outros pontos relevantes nesta obra de Agostinho, os quais sequer foram
abordados nesta resumida exposição, mas, dada a proposta deste artigo e sua
necessária brevidade, é suficiente o que até aqui foi exposto, restando apenas
resgatar as ideias centrais até aqui abordadas, as quais, a partir de agora,
serão objeto de análise meticulosa.
A primeira destas ideias
consiste em que Deus é o criador de todas as coisas, sem, contudo ser o autor
do mal. Em segundo lugar, que o livre-arbítrio é um bem, e foi concedido por
Deus para se alcançar a felicidade, embora seja o causador do mal. Isto posto,
passa-se a contrapor estas idéias ao pensamento protestante, tomando como base
a obra “As Institutas” de João Calvino.
Os conceitos de Agostinho em “O
livre-arbítrio” à luz do pensamento Calvinista
Para fazer tal comparação
de conceitos, entre os pensadores protestantes e os patrísticos, aqui
representados por Calvino e Agostinho respectivamente, deve-se ter em mente que
o pensamento protestante é muito menos especulativo, no sentido filosófico, do
que o pensamento agostiniano.
Acerca disso, o próprio
Calvino assevera que questões, tais como, “o que fazia Deus antes da criação do
mundo?”, ou, “por que protelou em criá-lo?”, não passam de especulações
danosas, pois estão acima da compreensão humana. Ao que conclui dizendo:
“Portanto, permaneçamos, de bom grado, encerrados dentro destes limites aos
quais Deus nos quis circunscrever e como que constringir-nos a mente, para que
não se extravie na desmedida ânsia de divagar. (CALVINO, 1985, p. 163; VOL. I).
Para os protestantes, as
Sagradas Escrituras são o único objeto de estudo capaz de conduzir a alguma
interpretação correta acerca de Deus ou de seus desígnios. Por tanto, se existe
alguma filosofia no pensamento protestante, é somente quanto ao método de
argumentação e comprovação de que o que está contido nas Escrituras é
verdadeiro, e como deve ser entendido. E isto a partir das próprias Escrituras
e não através de especulações exteriores a elas.
A Origem a partir do nada e o problema do
mal
É ponto comum entre os
autores que a origem de todas as coisas seja atribuída a Deus, único criador de
tudo que existe. Entretanto, importa referir que a Criação, - entendida como
todas as coisas, inclusive o homem - tanto para Agostinho quanto para Calvino,
não se dá a partir da essência do próprio Deus, como alguns tentam depreender
de suas obras, mas a partir do nada, como claramente se denota na obra de
Agostinho (2008, p. 29) que diz que Deus não tem “necessidade de criar qualquer
ser que seja, como se não fosse auto-suficiente. Isto porque tirou tudo do nada.”.
Ao que Calvino (1985, p. 192, Vol. I) fará coro dizendo que a Criação “é começo
de essência oriunda do nada”.
Que nenhuma criatura, nem
mesmo o homem, pode conter essência divina fica claro nas palavras do próprio
Agostinho que afirma que o único que possui a essência de Deus é Cristo, e por
isso mesmo ele lhe é igual, pois partilham da mesma essência. Como não
bastasse, afirma ainda que “por meio dele (Cristo) Deus fez tudo o que
tirou do nada” (AGOSTINHO, 2008, p. 29, grifo do autor)
Se o que possui a
essência de Deus é também Deus, segue-se que é impossível sustentar que haja no
homem alguma essência divina, como se Deus, a partir de si mesmo ou de algo que
lhe é próprio, houvera criado o homem ou qualquer outra criatura. E, ainda que
alguns usem o argumento de que o espírito que Deus concedeu à Adão (Gn 2.7)
seja parte de sua divindade, mesmo enquanto essência, Calvino ressalva
afirmando:
Nada mais inconstante
que o ser humano, visto que impulsos contrários lhe agitam a alma e a arrastam
a direções diversas, freqüentemente cede ao erro por ignorância, sucumbe
vencido a quaisquer mínimas tentações, sua própria alma sabemos ser fossa e
receptáculo de todas as imundícies, coisas essas que, se aceitamos que a
alma é porção da essência de Deus ou misterioso influxo da divindade,
faz-se necessário atribuir tudo isso à natureza de Deus. [...], Aliás, se o
espírito foi dado por Deus, e ao migrar da carne a ele retorna [Ec12.7], nem
por isso se deve dizer que lhe foi destacado da substância. (CALVINO, 1985, P.
192, VOL. I)
Ora, se a filosofia
cristã através do intelecto não consegue conceber que Deus tenha podido criar
vida a partir do nada, nem por isso deve tergiversar a ponto de considerar que
Deus tenha criado tudo a partir de sua essência sem, contudo, diminuir-se, ou
tornar a criatura, divina. Seja por ignorância, seja por malícia, desconsideram
a íntima relação entre essência e substância, sendo esta última necessariamente
“a parte essencial de algo” (HOUAISS, 2009, p. 314, 703). Logo, se duas coisas contêm
a mesma essência, necessariamente são da mesma natureza, o que nos leva a
inescapável conclusão de que se algo contém a mesma essência de Deus, este algo
também é Deus.
Isto posto, tem-se que
nem o homem nem qualquer outra criatura pode conter a essência de Deus - e se
fomos feitos a partir dela não há como não possuirmos aquilo a partir do que
fomos feitos -, doutra sorte seriamos deuses. E, se nada foi feito a partir da
substância nem da essência de Deus, resta que não havia nada de onde Deus pôde trazer
tudo à existência, de sorte que daí mesmo tudo criou. Que isto escape ao poder
do intelecto, já há muito percebeu o apóstolo Paulo dizendo: “Visto como na
sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a
Deus salvar os crentes pela loucura da pregação” (I CORINTIOS 1.21).
Já com respeito à questão
de ser Deus, o autor do mal ou não, Calvino afirma, em consonância com
Agostinho, que a fé verdadeira não admite que o mal provenha da natureza,
“porquanto nem a depravação e malignidade, seja do homem, seja do Diabo, ou os
pecados que daí nascem, provêm da natureza, mas da corrupção da natureza”.
(CALVINO, 1985, p. 166, VOL. II).
Isto é suficiente para se
concluir que, também para Calvino, embora Deus seja o criador de tudo quanto
existe, não é Ele o autor do mal. Também se depreende que, embora o mal não
seja objetivo enquanto ser, as ações más, ou seja, a corrupção daquilo que é
naturalmente bom, não só é objetiva como é uma capacidade humana atribuída por
Deus que, a exemplo de Agostinho, reside no livre-arbítrio. O que se verifica
na afirmação de Calvino a respeito do primeiro pecado de Adão, em que diz: “não
tem escusas quem recebeu tanto que, por seu próprio arbítrio, a si engendrasse
a ruína” (CALVINO, 1985, p. 197, VOL. I).
Porém, este é o momento
de se fazer uma ressalva quanto ao conceito de livre-arbítrio entre um e outro
autor, pois, para Calvino, ele irá cessar justamente neste ponto da existência
humana, ou seja, quando do pecado de Adão, o que será devidamente abordado a
partir de agora.
O Livre-arbítrio original e a condição
humana a partir de Adão
Para Calvino, em seu
estado original o homem possuía o poder da livre escolha entre o bem e o mal,
ao que chama livre-arbitrio. E, fazendo uso dele transgrediu o mandamento de
Deus, que consistia em não provar do fruto da árvore do bem e do mal, conforme
o relato do Livro de Gênesis. Pelo que, uma vez consumada a transgressão, o
homem decaiu de seu estado original, tendo como uma das conseqüências a perda
da capacidade de chegar até Deus por meio da livre vontade. O que Calvino
explica dizendo:
Deus proveu a alma do
homem com a mente, mediante a qual pudesse distinguir o bem do
mal, o justo do injusto, e, assistindo-a a luz da razão, percebesse o que se
deve seguir ou evitar[...]A esta mente Deus associa a vontade, em cuja
alçada está a escolha[...]Então proveu que se
acrescentasse a escolha, que dirigisse os apetites e regulasse a todos os
movimentos orgânicos, e assim a vontade fosse inteiramente consentânea à ação
moderadora da razão. Nesta integridade, o homem usufruía de
livre-arbítrio, mercê do qual, caso quisesse, poderia alcançar a vida
eterna.[...] Portanto, Adão podia manter-se, se o quisesse, visto que não
caiu senão de sua própria vontade. Entretanto, já que sua
perseverança era flexível, por isso veio tão facilmente a cair. Contudo, a
escolha do bem e do mal lhe era livre. (CALVINO, 1985, p. 196, VOL. I, grifos
do autor)
Segue-se então, que a
depravação da natureza do primeiro homem, a qual se deu através de sua livre
vontade, contaminou todos os que dele foram gerados, estendendo-se a condição
“decaída” a todos os homens. A partir deste momento, não há possibilidade de o
homem, por meio de sua livre vontade apenas, alcançar o cume da sabedoria a que
Agostinho se refere, visto que toda a natureza humana foi depravada.
Que pareça estranho à
filosofia que por culpa de um só homem todos devam arcar com as conseqüências
não é de admirar, mas, dado o objetivo deste artigo, não será usado de grande
esforço para sustentar a doutrina do pecado hereditário, senão a afirmação do
próprio Calvino a respeito da depravação da natureza humana através do pecado
de Adão:
Isso não se deu somente
por sua corrupção pessoal, a qual não nos diz respeito; ao contrário, porque
infeccionou a toda sua descendência com essa depravação em que caíra. Tampouco
se manteria, de outra maneira, também a declaração de Paulo de que todos
são por natureza filhos da ira [Ef 2.3], a não ser que, já no próprio ventre,
estivessem sob a maldição da culposidade. Depreende-se facilmente que
por certo aqui não se deve entender natureza como foi criada por
Deus; antes, como foi corrompida em Adão, pois que estaria muito longe de ser
procedente que Deus se fizesse o autor da morte. Portanto, de tal forma se
corrompeu Adão que o contágio se transmitiu dele a toda a descendência.
(CALVINO, 1985, p.22, VOL. II, grifos do autor)
Com base nesta
argumentação, pode-se passar com segurança a analisar como se dá, então, que o
homem consiga retornar a Deus, já que não pode ser por obra da sua vontade,
visto que para Calvino o homem não é sequer capaz de desejar estar ligado a
Deus, quanto menos poder fazê-lo, pois “todas as partes de sua alma vieram a
ser possuídas pelo pecado”. (CALVINO, 1985, p.24, VOL. II)
Apenas Deus pode levar o homem a desejar
o bem, tornando-o novamente livre
Fica substancialmente
claro em Calvino (1985, p. 65, Vol. II), que é apenas a intervenção ativa de
Deus que confere ao homem o poder da boa vontade. Diz ele, que é apenas por
obra da graça divina que a vontade do homem é revitalizada para o bem.
Segundo Bonifácio (apud
CALVINO, 1985, p. 75; VOL. II), pode-se perceber claramente que a graça
divina não é concedida a todos, mas somente aqueles a quem Deus elege. Esta
eleição, contudo, não se dá por mérito algum, de atos ou de vontade, mas tão
somente pela bondade de Deus. E, aqueles que não recebem esta graça não têm de
que se queixar, pois é com justiça que não a recebem, afinal é por vontade que
pecam. De sorte que não há injustiça alguma em Deus resgatar alguns de sua
condição decaída e não todos.
Em seguida, o autor usa
novamente dos escritos de Agostinho para sustentar esta tese:
[...] esta matéria não pode ser compreendida em síntese mais breve do que a do
capítulo oitavo do livro a Valentino, Da Correção e da Graça,
onde Agostinho ensina, em primeiro plano, que a vontade humana alcança a
graça não mediante a liberdade, mas a liberdade mediante a graça; que impresso
o senso do deleite, através da mesma graça, a vontade se conforma à
perpetuidade que se reforça de insuperável firmeza; que, a regê-la aquela,
jamais desfalece; desertando-a, de pronto se esboroa; que, pela graciosa
misericórdia do Senhor, não só se converte ao bem, mas ainda, convertida, nele
persevera; que a polarização da vontade humana em relação ao bem, e após a
polarização, a constância, depende unicamente da vontade de Deus, não de
qualquer mérito seu. E assim, ao homem é deixado um livre-arbítrio tal, se
assim se prefere chamá-lo, que escreve em outro lugar: que nem se pode converter
a Deus, nem em Deus persistir, senão pela graça: tudo quanto pode, o pode
pela graça. (CALVINO, 1985, p. 75, VOL. II, grifos do autor)
Sendo tão firme a
convicção de Agostinho, a qual Calvino retoma, parece impossível atribuir a
Agostinho o conceito de que o homem possui liberdade em sentido pleno - de
optar entre o bem e o mal - a menos que seja levado por Deus tanto ao querer
quanto ao perseverar no bem. Logo, Calvino conduz à uma interpretação não
puramente etimológica do termo “livre-arbítrio”, sustentando que Agostinho não
quis atribuir tal capacidade ao homem - de alcançar por si próprio o Bem e a
Justiça - o que só pode ser alcançado pela graça de Deus.
A correta compreensão do termo
livre-arbítrio em Agostinho segundo o pensamento Calvinista.
Desta forma, preocupado
com o uso impróprio do termo, Calvino tentará buscar em definições do próprio
Agostinho o que se deva entender por livre-arbítrio. Assim, novamente o autor
recorre a algumas definições agostinianas que sustentam esta tese:
o livre-arbítrio é a faculdade da razão
e da vontade pela qual, assistindo-as a graça, se escolhe o bem,
deixando ela de assisti-las, escolhe-se o mal. [...] sem o Espírito a vontade
do homem não é livre, uma vez que se fez sujeita a desejos que a acorrentam
e a dominam. [...] fazendo mal uso do livre-arbítrio, o homem não só a
si mesmo se perdeu, mas ainda a seu arbítrio. (AGOSTINHO apud CALVINO,
1985, p. 36, VOL. II, grifo do autor)
Com isso, Calvino sustenta, a partir do contexto de várias obras de Agostinho,
e não somente da obra O livre-arbítrio, que ele em nenhum momento afirma
que o homem tem a capacidade em si mesmo de querer e poder fazer o bem,
mas que o uso do termo livre-arbítrio se refere a capacidade de agir mal por
vontade, e não por coação alguma. Admitindo-se este ponto de vista, o uso do
termo “livre-arbítrio” pelos patrísticos é impróprio, ao que Calvino faz duras
críticas dizendo:
Desse modo, pois,
dir-se-á que o homem é dotado de livre-arbítrio: não porque tenha livre escolha
do bem e do mal, igualmente; ao contrário, porque age mal por vontade, não por efeito
de coação. Por certo que isto soa muito bem. Mas, a que servia
etiquetar com título tão pomposo coisa de tão reduzida importância?
(CALVINO, 1985, p.34; VOL. II, grifos do autor)
Com efeito, seria
impróprio denominar “livre-arbítrio” a vontade pela qual o homem se inclina
para o pecado, sendo que não reside nele outra vontade senão a de pecar. E, com
base no que foi exposto, admitindo-se que o homem esteja em tal estado de
natureza que lhe seja impossível alcançar ou ao menos desejar a Justiça, a não
ser pela intervenção da graça divina, é muito mais adequado chamá-lo “escravo
do pecado”, como o faz a Escritura, do que chamá-lo livre.
Considerações finais
Com respeito a Criação,
restou bem demonstrado que tanto para Agostinho quanto para Calvino ela se dá a
partir do nada, pelo poder infinito de Deus, e que em momento algum qualquer
dos autores sugere que exista no homem, ou em qualquer outra criatura, qualquer
parte essencial do próprio Deus. Que tal pensamento seja inatingível ao
intelecto de nenhuma sorte descarta a possibilidade, visto que tal pensamento
pertence a dimensão da fé e não da razão. Igualmente, a exposição que foi
feita com respeito a questão do mal não deixou dúvidas de que o pensamento
agostiniano se coaduna perfeitamente com os ideais calvinistas e do pensamento
protestante que daí decorre, a saber, que o mal não possuí uma natureza
objetiva em si mesmo, mas que é apenas uma conseqüência da livre vontade
concedida por Deus ao homem.
Ressalta-se também, que
conforme foi dito na primeira parte deste artigo, em Agostinho, a vontade do
homem é o ponto determinante entre ele alcançar ou não o Bem para o qual foi
criado. Entretanto, a partir da exposição da abordagem calvinista a cerca do
tema, pode-se perceber que a intervenção ativa da graça de Deus para se gerar
esta vontade é indispensável. Com o que o próprio Agostinho concordaria,
conforme demonstrou Calvino, o que não se pode desconsiderar. Logo, a
compreensão correta desta capacidade da vontade se dá somente no sentido de que
ela é de fato capaz a partir do momento em que é alcançada pela graça divina, o
que a torna capaz de desejar o bem; antes, porém, a vontade inclina-se somente
para o mal, em virtude da depravação da natureza humana. Ainda, que embora
Agostinho sustente que é pela vontade e pelo querer que se chega a boa vontade,
isso de maneira nenhuma exclui que a graça de Deus suscite tanto a vontade
quanto o querer, como sugere Calvino.
E, por fim, que o termo
livre-arbítrio utilizado por Agostinho, segundo a ótica calvinista, não deve
ser compreendido em caráter pleno, no sentido etimológico da palavra, pois como
Calvino tenta demonstrar, o sentido correto é apenas o de que é por sua própria
vontade deliberada que o homem peca. Já com respeito a praticar o bem, tal pode
ser feito apenas se o homem estiver ligado a Deus, e, se não estiver, tudo o
que fizer será um mal ainda que aos olhos pareça um bem. Como somente a graça
divina pode reconciliar o homem com Deus, segue-se que livre-arbítrio, no
sentido pleno do termo, apenas existe para o mal e não para o bem. Daí a
advertência de Calvino de que o termo utilizado por Agostinho, e também por
outros patrísticos, como Orígenes, é inadequado, visto como não contempla em si
mesmo o que os autores queriam dizer.
Assim, findada a
exposição e contraposição a que se dedicou o presente artigo, percebe-se com
inabálavel certeza que não há grandes discrepâncias entre os pensamentos
agostiniano e calvinista, muito pelo contrário. Ao menos para Calvino, longe de
ser fonte de objeção, os escritos de Agostinho servem de firme sustentação para
o ideal calvinista.
Referências
AGOSTINHO. S. O livre-arbítrio. Paulus, 5 ed. São Paulo,
2008.
BIBLIA SAGRADA. Versão Almeida Revista e
Corrigida, Edição de 1995.
CALVINO, J. As institutas: ou tratado da religião cristã.
Edição Clássica (latim).
HOUAISS, A. et al. Dicionário houaiss da língua portuguesa. 3
ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2008.
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